segunda-feira, maio 17, 2010

Parte VI

Sentiu o cheiro de molhado que lhe invadia o sono, esforçou-se para abrir os olhos enquanto percebia que eles já estavam abertos. Novamente estava preso. Para essas situações, havia criado alguns métodos para o despertar, mas nenhum funcionou. Não se afobou, decidiu esperar. Claramente, podia perceber a inexistência da linearidade do tempo, pensamentos e acontecimentos voavam em frações de segundo ou quem sabe, em uma medida singular de tempo, somente dele, nada poderia o ameaçar ali. Sentiu-se em casa.

terça-feira, abril 20, 2010

Parte V

Amargurou e apreciou um gosto de carvalho que não parecia mais sair de sua boca, o paladar ficava mais aguçado enquanto imaginava os mais estranhos conjuntos de notas em sua cabeça, mas era sempre o mesmo arranjo que lhe dava sede e despertava aquele gosto do passado, de madeira...

F Dm C Am
F Dm Am C

... e ficou...

domingo, abril 04, 2010

Parte IV

Foi logo após uma daquelas visitas das crianças que encontrou no canto da sala um bilhete, como se alguém o houvesse plantado lá. Abriu com cuidado, pois eram quatro dobras perfeitas,a caligrafia não parecia ser de nenhuma criança que ali esteve. Resolveu ler o bilhete não assinado.


Ser Forte

ser forte é saber do impossível sim;
é também não querer ir para trás ou pular para a frente;
ser forte é ir contra todo o instinto;
é se sentir mais vivo...

ser forte é ser sozinho;
é ter um ponto fraco;
ser forte é uma palavra para recompensar o esforço;
ser forte exige ter sido fraco...

ser forte é ser otimista;
é tentar mudar o futuro;
ser forte é ignorar a si mesmo;
é fingir que está tudo bem...

ser forte é esperar;
é viver o hoje;
e saber que nada vai acontecer;
é sentir vivo e estar morto...

somos fortes.
mas, qual dos fortes?

Deitou ali mesmo, era outono e a pele contra o piso frio lhe dava calafrios, mas ficou imóvel, deitado sobre seu braço esquerdo quase que em posição fetal. Era familiar o conteúdo do bilhete, passou a ideia de que ele poderia ser o autor, mas certas frases não faziam sentido, não fora ele quem escreveu o bilhete, pelo menos não o bilhete inteiro.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Parte III

Não se importava com a chuva, afinal nunca deixava o local. Estranhava o fato de tudo estar tão limpo e de como sua presença não interferia no ambiente. Lembrou-se de como gostava de se sujar ou de como tolerava a bagunça em seu quarto e poderia passar dias sem tomar banho. Tudo isso não importava mais, tudo era limpo, branco e inodoro que sequer conseguia inspiração para odiar tal situação.

domingo, outubro 18, 2009

Parte II

Passaram-se oito meses e muito havia mudado, os móveis, o tapete e as etiquetas já não faziam parte da sua convivência, os dia eram longos, e em algumas oportunidades notava que a noite nem surgia. Constantemente, era pego recordando sensações, cheiros e vozes. Não as identificava e sequer entendia a relação com o seu passado, passado que parecia não possuir, como se sua existência dependesse da interpretação de recordações que nada eram familiares. Comia pouco, não tomava café da manhã e a primeira refeição do dia era sempre sobra da última refeição do dia anterior. Sua segunda refeição era também a última do dia.

Visitas não eram frequentes mas também não eram fatos isolados. Geralmente eram crianças, pálidas e com vestimentas cinza-chumbo carregando consigo seus brinquedos feitos pelo mesmo marceneiro. Não conversavam, apenas trocavam olhares de reprovação e pequenos sons de descontentamento podiam ser ouvidos. As visitas sempre acabavam com as crianças aos prantos e implorando para não mais voltarem, os pais que aguardavam pelos filhos no lado de fora do apartamento as levam então, embora.

Ficava imóvel ao meio do cheiro da visita, o odor que os brinquedos de madeira deixavam ao serem friccionados contra o piso frio de seu apartamento acendia um sentimento de esperança, algo que lhe dizia que era possível desfazer todo o emaranhado de confusão que o enganava, que o fazia sentir definhando rumo ao escárnio de sua existência.